A forma do sonho

Laís Grilletti
5 min readJun 3, 2023

Era nova na cidade. Na bagagem não carregava mais que algumas mudas de roupa e alguns sonhos dobrados à vácuo para o zíper fechar. Eram sonhos impossíveis, delirantes, atrevidos, alguns meio malcriados, para qualquer um acostumado com aqueles de refinada etiqueta.

Começara essa lista há tempos desde quando aprendeu que sonho se cria, mas não bate na porta.

A primeira vez a pegou de surpresa. Tinha 5 anos e brincava sozinha no quintal quando sonhou um amigo. Três minutos se passaram e ela ouviu um barulho na cozinha. Era o sonho buscando algo para comer como quem já tem a chave de casa. Bicho grande, branco e peludo, de olhos bons. Amoroso que só. Gostoso de abraçar em noite fria de raios aterrorizantes que explodem em luz no céu. Ele tremia pulando no seu colo, enquanto ela cantava a música que aprendeu com a mãe. Chorava por bobagens, tinha medo de cachorro e a ele faltava uma noção do próprio tamanho, feito dogue alemão sentado no colo do dono.

Amigo foi o primeiro, mas muitos sonhos o acompanharam. Nem todos brancos e peludos. Alguns magros, de voz fina e engraçada, outros achatados de forma quadrada. Demorou uns bons anos até que ela aprendesse a sonhar do seu tamanho. Os primeiros, de tão pequenos, se escondiam atrás da orelha e sussurravam em seu ouvido. Já na ambição de beber o mundo num gole só, quase engasgou com sonhos maiores que a própria casa. Só conseguiam passar o dedão do pé pela porta, enquanto o pescoço atravessava as nuvens no alto.

Na calibragem de suas fabulaçōes, ousava sempre um tantinho mais. Foi brincando com suas formas, cores, vozes. Foi sonhando de olhos abertos o vir-a-ser do mundo.

Mas o alerta te é dado. Se numa conversa de elevador, surgir o assunto, tente evitar qualquer confrontação. Ela nunca foi fã de sonho-celebridade. Vai se exaltar se você insistir. Aqueles já conhecidos pela crítica, sonhados por tanta gente. Tem o Casa-familia-cachorro, tem o Viajar-pelo-mundo, o Ano-sabático-na-Tailandia, e até Meu-primeiro-milhão-antes-dos-30.

Dizem que eles fizeram chacota dos sonhos dela, quando tinha 13 anos. Ingênuos, utópicos, bobos até. Chegaram chorando, uma cachoeira barulhenta e sem fim. Levou três dias para desencharcar a casa e acalmar cada um.

Se entristecia em ver seus amigos meticulosamente investindo anos de suas vidas aperfeiçoando tais sonhos.

Achava perigoso uma vida de um sonho só.

Ela, por outro lado, preferia criar sonhos alternativos, sem forma, nem categoria, só pra estralar o pensamento e esticar a realidade elástica que andava tão rígida e concreta.

Só por passatempo, sonhava sonhos de impostos pagos em atos de delicadeza, uma roda humana conectada pelo dedo mindinho, crimes compensados por hortas, escolas abertas na floresta, uma criança presidente, ou um visto para terráqueos de acesso irrestrito.

Nos dias em que via o mar, sonhava futuros de amor, revoluções de gentileza, óculos de beleza, e um planeta em que a vida do Papa fosse tão protegida e inestimável como a de uma borboleta.

Agora na cidade de luzes e espelhos, se surpreendia com o que se apresentava. Nunca vira tantos sonhos-celebridades andando pela rua. Em toda esquina, por todo lugar. Eram tão iguais que chegava a confundir quem era dono de quem. Teve medo de que seus sonhos se sentissem acanhados, caçoados, excluídos mais uma vez. Não tinham sorriso perfeito, alguns sofriam de unha encravada e se olhasse de perto uma sobrancelha era sempre maior que a outra.

Ao abrir a mala, eles pularam, esbaforidos, amassados. Chacoalhavam para ganhar forma, alongavam as pernas depois de longa viagem, desgrudavam a pele que colou em outro sonho. O quarto de uma cama lotou em segundos. Abraçavam ela em roda com a saudade genuína de quem não se vê há três meses. Estava, enfim, acompanhada de todos eles na cidade feita de luz e silhueta.

Sabia que pisar com eles na rua causaria alvoroços, apontar de dedos, um choque geral. Mas se comprometeu com a urgente necessidade de sonhos mais diversos. Ainda que tortos, bobos, coxos, imperfeitos. Era seu trabalho seguir imaginando até sonhar aqueles sonhos que rasgam a barreira do impossível e criam uma nova lógica no mundo.

Sonhos que partem do coração e se inspiram pelo alto. Maiores do que nós, nos alargam. E nos lembram que nós também somos gigantes.

Saíram para turistar. Empolgados como estavam com a nova cidade compraram camisetas, bonés e já faltava geladeira para tanto ímã de estátua. A tudo que viam se encantavam. Encantavam também quem os via.

A jovem do café não acreditou quando o sonho de gentileza pulou o balcão e a ajudou a preparar o próprio latte. O motorista do vagão quase caiu pra trás ao encontrar paciência na plataforma do metrô. Teve jornalista entrevistando o sonho de uma vida devagar, recepcionista curiosa pela ideia de família com outros laços, e senhores numa barbearia silenciaram ao ouvir o sonho de equidade contando de uma masculinidade compassiva, enquanto aparava a barba.

O que aconteceu a seguir mudou os rumos do mundo.

A jovem, o motorista, jornalista, recepcionista e todos os senhores voltaram para casa com vontade de novos sonhos. No dia seguinte, já se via mais sonhos fora do padrão. Alguns rechonchudos, outros de nariz pontudo, cabelo com frizz, ou óculos fundo de garrafa. Falavam de uma nova constituição, desenhavam cidades verdes, tagarelavam sobre outras moedas e discursavam o fim da desigualdade.

Lutavam pela abolição da escravidão vegetal denunciando fazendas de soja, milho, ou café em que plantas homogêneas nasciam para servir aos humanos. Expunham os horrores de cachorros em cativeiro, vivendo na coleira ou no carpete de um apartamento. Lembravam corações esquecidos do que era acordar ao som de pássaros em vez de sirenes.

Era o primeiro dia de um novo mundo. Um dia que jamais se esqueceu. Uma nova legião de sonhos migraria para outros países, outra chegaria de distantes planetas.

Foram se aglomerando em sonhos coletivos, criados na pluralidade, desenhados por muitas mãos.

Eram mais altos que o Himalaia, mais largos que um país. Sonhos de mudar a forma do mundo. Sonhos de reescrever o futuro. Ela que chegara na cidade há três meses não acreditava que sua revolução caberia na mala. Olhava pela janela as novas cores de uma cidade em transição, abraçada ao primeiro de todos os sonhos, aquele grande e peludo amigo que nunca a abandonou. Uma lágrima escorreu pelo canto do olho, mas ele a limpou.

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Laís Grilletti

Escritora e contadora de histórias, autora do livro Minu e a cidade sem tempo. Escreve histórias infantis que, vez ou outra, caem nas mãos dos adultos.