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Crista

Laís Grilletti

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Crista era uma onda bem pé na areia.

Planejava seu futuro antes mesmo de ter tamanho para cruzar a orla. Ia e voltava, ia e voltava. Todos os dias, seguindo o fluxo da maré. Sonhava seguir os passos do avô, onda de três metros que desafiava os mais desatinados dos surfistas. Ganhou campeonatos e teve sua biografia marinha registrada em livros de recordes. Chegou a ser morada de cardumes inteiros sem nunca desmanchar.

À noite, quando a praia já era silêncio, Crista não cessava seu ir e vir. Sonhava de olhos abertos atravessar mares e oceanos para tocar praias ainda não descobertas pelos mapas humanos. Seu peito enchia para explorar o mundo até sua última gota. Embebida por esses devaneios, jurava tocar o céu com a pontinha de seus mares, iluminada por luz imensa, maior que qualquer estrela, reinando lá do alto.

Nesse instante, se olhasse no fundo dos olhos da redonda lunação, esquecia até seu nome. Sentia-se em casa. Durava, porém, um milésimo de tempo, antes da próxima arrebentação. Era o mais próximo que se sentia do mistério.

Assim Crista cresceu. Foi de marolinha que faz cócegas nos pés de uma criança a onda cada vez mais alta, em seu movimento persistente, incessante. Em pouco tempo, já arrebentava em novas praias, desfazendo castelinhos em areias brancas que sua família nunca tocou.

Até que um dia, quando já conhecia cada grão de areia daquelas praias, surgiu um convite. Uma comunidade de cachalotes estava de partida para o outro lado do mundo e convidou Crista para acompanhá-las. Era para lá de qualquer horizonte, em mares nunca sequer sonhados por seus ancestrais.

Crista jurou flagrar um sorriso na luz que iluminava suas águas quando aceitou o convite.

No preparo da partida, tomou banho de mar para conversar com Iemanjá. Pediu proteção para suas águas, força em suas cristas e leveza no seu ir e vir. Adorava a dança que tomava conta de seu ser quando se sentia em alinhamento profundo com a maré. Era a noite antes de partir e esse pensamento a mergulhou em sono profundo antes do nascer do sol.

No dia seguinte, as amigas cachalotes a acordaram com um esguicho para não perder o tempo da corrente. Crista olhou uma última vez o horizonte da praia que chegava ao mais fundo das montanhas, se despediu da vista e virou-se de costas. O vento gentil a empurrou.

A cada novo respiro, acenava às amigas ondas que ficavam na orla para trás. Cruzava as primeiras marolinhas, avançava para depois das ondulações mais altas, até ultrapassar as mais compridas ondas. Sentiu suas águas esfriarem no centro de seu ser quando cruzou a última arrebentação. No horizonte, tudo era água.

Então ela mergulhou.

Suas águas se fundiram ao mar aberto e qualquer extremidade se dissolveu. No centro do mundo, tudo era azul. Qualquer forma ou curva escorria e o silêncio era profundo ali onde os pássaros não alcançavam voo. Tudo era perfeito, completo, absoluto.

No alto, a lua sorriu.

A paz encharcou cada gota do seu ser. Tempestades que antes alagavam seus medos, relâmpagos que cortavam suas ondas já não assustavam. Ela morava agora depois do horizonte, onde nem os olhos conseguiam alcançar.

As amigas cachalotes seguiram viagem indicando o caminho ao vento. Sabiam que Crista precisava de dias fora do tempo, mas tinham as próprias correntes a seguir.

Aos poucos, o vento foi sussurrando com delicadeza a hora de ir. Crista fingia não ouvir. Era tão gostosa a sensação de ser oceano que não tinha pressa nenhuma em voltar.

O vento, paciente, soprava. Crista tentava se agarrar, mas tudo era mar.

A lua com sua sabedoria ancestral se fez maior. A força que empurrava Crista era tanta que chacoalhava o mais fundo do seu ser. Era noite de lua cheia. O sopro do vento e a força da lua desprendiam Crista do oceano até que seus contornos voltavam a se formar. A travessia não podia parar.

Um recado da lua sussurrado pelo vento acalmou suas águas salgadas.

— Crista, querida, você é oceano. Sempre será. Mas é na praia que seus mares crescem. É na areia que você se encontra.

Crista era pura água salgada. Tinha medo de se soltar e esquecer. Temia que as distrações da praia a afastassem da maré.

— Confia que teus mares sabem o caminho. E você sempre vai saber voltar para casa. Quando o medo bater, olhe para o alto. Eu estarei aqui.

A luz tomou cada gota do seu ser e Crista se sentiu abraçada. Qualquer força que agarrasse as rochas do fundo do mar se soltou. Abandonou suas resistências e fluiu, soprada pelo vento.

Avistou em novo horizonte cristas novas em praia inédita e sentiu suas águas mais quentes, menos tormentosas. Era como se as conhecesse de outros oceanos. Olhava para cada companheira de maré com outros olhos, de quem se dá conta: você é um outro eu.

Mergulhando na profundeza dos seus mares, Crista despertou oceano. Lembrou do sonho de infância de ser onda gigante de assustar surfistas, mas não se sentia mais preenchida. Concentrou-se no ir e vir de suas ondas, na dança com a maré. Batia nas pedras sem endurecer. Brincava com o vento. Tinha alma de rio.

Depois de muito ir e vir, Crista tocou um dia os olhos de uma menina. Tocou e fez morada. Desde então, conta a lua, o oceano cruzou a praia e vai aonde essa menina for. Se tiver a sorte de cruzar os olhos com ela, ele também vai morar em você.

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Laís Grilletti

Escritora e contadora de histórias, autora do livro Minu e a cidade sem tempo. Escreve histórias infantis que, vez ou outra, caem nas mãos dos adultos.