Retratos

Laís Grilletti
2 min readAug 11, 2021

Cada bebê, quando nasce, ganha uma parede.

Os mais bem memorados, espremem quadrinhos dourados de lembranças datadas da primeira infância. Lembram do balançar torto dos primeiros passos, da voz do pai, do gosto do chantilly no bolo de primeiro ano. Lembram do cheiro do bolinho de chuva, do gosto da uva, do molhado da chuva. Recitam diálogos em detalhe de palavra e entonação. Recontam um conto com a certeza de quem fotografou o instante para registro e prova.

Já a minha parede nunca se ocupou por inteira. As fotografias vivas do que passou viram, em questão de tempo, contornos a lápis de uma memória que — num esbarrão! — apagou.

Alguns flashes ainda tentam se fixar na parede, mas caem com o sopro do vento, sem moldura dourada para proteger a cena.

Admiro quem toca nas suas memórias e rebobina o filme só para viver de novo uma primeira vez. Dos retalhos que guardei no porão, salvam-se o barulho do cinema com gosto de Halls misturado na pipoca. O resto é apagão.

Esses dias reparei, enfim, numa outra parede do outro lado da sala. Quase escondida atrás de pensamentos, arrependimentos e vestígios de fala. São desenhos em grafite de memórias do que não existe. Cenas tão vivas, ainda que desenhadas, que defendem seu lugar em espaço-tempo mais apressado.

Ficção da vida real.

Espano cada desenho, cuidando para não amassarem. Frágeis, podem se rasgar com o sopro do tempo. Ainda não. Não antes de mudarem de parede. Do desenho, virarem fotografia. Memórias antecipadas de uma realidade já pintada.

Sonhos de sonhar de olhos abertos.

Ajusto o último quadro e me distancio para ver a parede inteira, espanada. Sorrio com a composição que vejo. A parede de retratos me aponta para a porta. Caminho até a borda. Do outro lado, o mundo segura meu nome no papel. Enfim, dou o próximo passo.

--

--

Laís Grilletti

Escritora e contadora de histórias, autora do livro Minu e a cidade sem tempo. Escreve histórias infantis que, vez ou outra, caem nas mãos dos adultos.