Sala de Espelhos

Laís Grilletti
3 min readSep 7, 2021

Planejava entrar de olhos fechados. Ainda preferia a escuridão ao reflexo. Sabia bem de suas distorções. Leu nos livros sobre a física por trás da propagação da luz. Aprendeu pela lógica a fragilidade de uma imagem.

Depois de anos usando, no entanto, ainda não conseguia tirar algumas lentes nem para dormir.

Tratava anos de ilusão de ótica na terapia, mas a cura viria numa visita.

Na entrada do Museu de Ciências, cruzou a seção de bolhas de sabão, passou correndo pela bola eletromagnética até, enfim, encontrar. De olhos entreabertos, deu o primeiro passo hesitante para dentro da Sala de Espelhos.

Levantou em câmera lenta as pálpebras como quem estranha a luz do sol ao acordar. Antes do primeiro piscar, foi rodeada por cópias múltiplas da própria imagem, se reproduzindo ao infinito ao primeiro toque da luz.

Era ela em todas as versões, reais e projetadas. Era ela por todos os olhos que um dia a viram.

Encostou no próprio braço para recordar qual das imagens era real. Seguiu pela sala enrolada no próprio abraço.

À direita, o espelho côncavo mostrava em alargamento as partes que nunca gostou de si. No lado oposto, o convexo apequenava seu tamanho, na miniatura exata que se sentia ao entrar naquele prédio com pé direito duplo e nove elevadores.

Alguns dos espelhos, rachados e repetidos, fragmentavam imagens que moravam há tempos na memória e nas feridas. Ela virava o rosto sem coragem de encarar.

Tocou os braços, o rosto. Ainda estava lá.

No segundo seguinte que seus olhos se abriram, encontrou um último espelho. Deitado, redondo, caberia na palma de sua mão. Aproximou-se aos poucos, até que seus pés encostaram na borda. Inclinou o rosto, mas voltou no mesmo instante.

No reflexo, um vislumbre do Universo.

Imensuráveis estrelas brilhavam no infinito escuro, de uma beleza tão grande que tornaria humilde o mais brilhante dos vagalumes.

Aquele era o espelho original.

Fotógrafo da sua natureza, guardião da sua luz. Contava a história de quem ela foi antes de ser quem é. Narrava sem palavras os três bilhões de anos que se agrupavam nela. O fluxo de vida que percorreu o tempo até se aglomerar nas moléculas que chamava de eu.

Pela primeira vez, diante do espelho, a luz a atravessou. Levou com ela a sequência fotográfica de sua ancestralidade. Todas as linhagens anteriores, desde antes das primeiras formas humanas. Atravessou seu corpo lembrando do emaranhado de vida que a enrosca, e enrosca a todos que já visitaram a Sala de Espelhos.

Naquele instante do reflexo, um som se fez. Do lado de fora, ouviu-se um barulho suave como um pingente de cristal caindo no chão. Algo quebrou. Ao seu redor, a poeira subiu. Nenhum espelho resistiu. As imagens há tanto refletidas eram agora cacos no chão.

Ela não mexeu os olhos para se certificar do que era. Continuou de pupilas fixas na sua imagem, admirando os olhos do Universo.

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Laís Grilletti

Escritora e contadora de histórias, autora do livro Minu e a cidade sem tempo. Escreve histórias infantis que, vez ou outra, caem nas mãos dos adultos.